02 março, 2012

O neurocientista a quem já chamaram "o psicólogo dos carapaus"

Entrevista de Ana Gerschenfeld, no Público de 27/02/2012, a Rui Oliveira.
Podia só citar algumas partes mais importantes, mas como a entrevista é toda muito interessante e importante, publico-a toda aqui, já que quem não comprou o jornal neste dia e não é assinante da versão online, nunca mais a vai ler.


Talvez o maior desafio da ciência actual seja conseguir ligar o que se sabe do funcionamento do cérebro a comportamentos e tomadas de decisões complexos. A aventura nem sempre tem sido fácil.
Rui Oliveira tem muita paciência. Nota-se logo. Fazemos-lhe perguntas e mais perguntas (algumas hesitantes) e ele responde com a maior calma e simpatia. Explica pausadamente o tipo de trabalho que se faz no seu laboratório. No mínimo, as suas experiências são surpreendentes. Nuns aquários, numa sala situada algures no edifício labiríntico do Instituto Superior de Psicologia Aplicada, em Lisboa - o ISPA, onde Rui Oliveira também ensina e do qual é actualmente o reitor -, ele e a sua equipa põem uns peixinhos a lutar uns contra outros para estudar as alterações biológicas induzidas no minúsculo cérebro desses animais pelo desenlace dos confrontos. Lê-se nas etiquetas dos aquários: "Exp.: Alteração Estatuto Social". Estatuto social? Sim, isso mesmo. É que, depois da luta, os peixes apresentam padrões de actividade genética diferentes conforme tenham saído de lá vencedores ou vencidos. Bastam 30 minutos desta interacção para o comportamento social (de peixe dominante ou subordinado) ficar, por assim dizer, "gravado" na biologia cerebral dos animais - e as marcas são "brutais", diz Rui Oliveira. Há uns dias, o neurocientista apresentou no ISPA os mais recentes resultados da sua equipa - e a seguir, conversou com o P2.

Tem havido progressos significativos no sentido de conciliar a Biologia e a Psicologia?


Tem. Sobretudo desde a década de 90, a "década do cérebro", em que houve um grande investimento nos Estados Unidos e se formaram equipas de neurociências multidisciplinares que promoveram uma aproximação entre as abordagens mais psicológicas e as abordagens mais biológicas.

Até aí, a ideia era que os diferentes níveis de análise do comportamento eram hierárquicos e unidireccionais: as leis da fFsica informavam as leis da Química, que informavam as leis da Biologia, que informavam as leis da Psicologia, que informavam as leis da Sociologia. Mas, com a constituição de equipas de neurociências, com psicólogos, biólogos, médicos, etc., a interagirem, houve uma fertilização cruzada de saberes diferentes. E tornou-se então evidente que não era só o biológico a explicar o psicológico e o social, mas que as dimensões psicossociais também exerciam um feedback nos mecanismos biológicos. Que o inato e o aprendido (nature and nurture) eram, no fundo, duas faces de uma mesma moeda e não abordagens mutuamente exclusivas.

Também se descobriram mecanismos que nos permitem compreender como é que a informação social pode influenciar os mecanismos biológicos, com os avanços na genética, e nomeadamente na epigenética. Os mecanismos epigenéticos são os que regulam a expressão dos genes e a epigenética permite compreender como é que o mesmo genótipo [conjunto de genes] pode produzir comportamentos diferentes em diferentes momentos.

E também permite perceber como é que as experiências de vida podem marcar de maneira duradoura o padrão comportamental de um indivíduo. Um dos desafios quando se estuda o comportamento social é a sua complexidade, a sua plasticidade, é o facto de não haver regras simples do género "este input vai provocar sempre este output". O mesmo input pode produzir outputs diferentes, dependendo de variações pequenas do contexto social e do estado interno em que está o indivíduo. As regras não são simples, como julgávamos de início.

Estuda o comportamento social nos peixes. Faz sentido fazer experiências no animal relativas a algo que é suposto ser um exclusivo dos humanos - ou, quando muito, dos primatas para cima?

Nós não estamos a questionar o facto de os comportamentos sociais mais complexos serem um exclusivo dos humanos. Sem dúvida nós somos capazes de competências sociais que outras espécies não têm - ou têm a um nível menos desenvolvido. Por exemplo, empatia pelos outros.

Há 15 anos, isto de andar a estudar Psicologia em peixes era uma coisa que não fazia grande sentido. Mas o que se está neste momento a constatar é que temos mais a ganhar se não pusermos a ênfase naquilo que é unicamente humano, porque podemos então compreender como é que outras espécies mais simples (que, por serem mais simples, são mais facilmente estudadas em contextos experimentais) navegam nos seus ambientes sociais.

A maior parte das competências de cognição social que são necessárias nos ambientes em que existem interacções repetidas entre os mesmos indivíduos não exigem cérebros muito complexos. Os cérebros-miniatura possuem as ferramentas necessárias para resolver os problemas. Podem é ter menos plasticidade - um repertório mais pequeno de comportamentos, menos graus de liberdade. Mas o fenómeno de base já lá está.

Ora, nós podemos tirar partido disso. Para estudar espécies muito mais simples, temos abordagens experimentais muito mais poderosas do que se nos embrenharmos no estudo dos chimpanzés. No nosso grupo, estudamos o peixe-zebra e a tilápia [Oreochromis mossambicus, um peixe de Moçambique], mas há outros grupos que trabalham na drosófila e no ratinho.

Ainda há muitos preconceitos em relação a este tipo de modelo animal?


Saindo da comunidade das neurociências, acho que ainda há preconceitos, tanto do lado dos psicólogos como dos biólogos. Eu estou numa situação confortável, porque sou biólogo de formação e sou psicólogo por viver rodeado de psicólogos e num instituto de Psicologia. E devo dizer que estes trabalhos são cada vez menos vistos com desconfiança, embora inicialmente a desconfiança fosse muita. Para os psicólogos, nós éramos os "psicólogos dos carapaus", como cheguei a ser chamado aqui no ISPA [ri-se]. Éramos reducionistas, reduzíamos tudo aos genes. A relação, esse cálice sagrado dos psicólogos, não se "agarrava" com biologia. E muito menos em peixes. Quanto aos biólogos, estudar o comportamento sempre foi visto por eles como uma soft-science.

É cada vez menos assim. Mas é preciso que os que se metem nesta aventura tenham alguma resiliência, porque têm de ouvir muitas bocas... e não ligar... e continuar firmemente.

Dentro das comunidade de peixes que estuda, há indivíduos dominantes e subordinados. O seu estatuto social não é imutável?

A dominância não é um atributo individual. Não é uma característica intrínseca do indivíduo, vem do grupo onde está. E de facto, um tipo de trabalho que nós fazemos incide precisamente sobre os efeitos da mudança de estatuto social.

Nos peixes, isso é muito fácil de fazer. Eu aqui posso manipular grupos de peixes naqueles aquários que viu lá em baixo. Para dar um exemplo: tomemos um indivíduo que é dominante. Se eu nunca intervir no grupo, ele vai ser o "macho alfa" daquele grupo e os outros peixes vão crescer menos. Ele vai manter-se dominante durante muito tempo, até ter algum problema que o torne vulnerável e outro aproveite para ganhar esse estatuto.

Mas, experimentalmente, eu posso simular algo que acontece muitas vezes na natureza: a imigração. Posso pegar agora num indivíduo que é dominante neste grupo e colocá-lo noutro grupo onde, jogando com diferenças de tamanho, eu posso induzir a sua passagem de macho dominante para subordinado. Por exemplo, pondo-o num aquário em que todos são maiores do que ele. Por muito dominante que ele esteja convencido que é, rapidamente percebe que perdeu o seu estatuto [ri-se].

Também posso fazer o contrário, que é pegar num indivíduo subordinado e transportá-lo para um aquário de indivíduos todos muito mais pequenos do que ele, em que ele percebe que tem ali uma oportunidade de se tornar dominante. E torna-se dominante.

E a seguir, o que podemos fazer é olhar para o cérebro desses animais e ver que modificações estão a ocorrer quando induzimos experimentalmente uma mudança de estatuto social. Podemos assim perceber como é que o seu cérebro e o seu organismo respondem a alterações de estatuto. E o que é muito interessante verificar é que essas respostas são imediatas. Minutos depois, começamos a ter os primeiros sinais.

Sinais biológicos?

Sim. Começamos a ter alterações do perfil de expressão génica. Nas nossas experiências no peixe-zebra, podemos quantificar em simultâneo a expressão de 15 mil genes [graças a um chip de análise genética]. E quando pomos um peixe a lutar com outro, ao fim de 30 minutos, se a luta alterou o estatuto social desse peixe, mais de 200 genes no seu cérebro vão mudar o seu nível de expressão [nível de actividade].

Manipulamos o ambiente social e [a actividade] de alguns genes começa a aumentar, enquanto a de outros começa a diminuir. Não suspeitávamos de que isso pudesse ser tão imediato, julgávamos que ia demorar mais tempo até vermos mudanças tão maciças, até termos tantos genes a responder a um evento na vida do organismo.

Mas perder ou ganhar estatuto social são coisas sérias e o que nós estamos agora a mostrar é que a expressão génica no cérebro é muito sensível ao ambiente social em que os animais se encontram - e que podemos induzir alterações profundas no perfil dessa expressão génica. É quase como se existisse uma assinatura social de expressão génica no cérebro dos peixes.

Há um perfil de expressão génica típico de um indivíduo dominante e um perfil típico de um subordinado e nós conseguimos fazer o peixe passar de um perfil para o outro induzindo uma mudança de estatuto social [através da luta].

E a seguir, conseguimos olhar para o perfil de expressão génica de um peixe e dizer o que é que lhe aconteceu nos 30 minutos de luta. Conseguimos de facto agrupar correctamente todos os peixes, sem saber o que lhes aconteceu nesses últimos minutos. Olhando apenas para o perfil de expressão génica no cérebro de cada peixe, podemos dizer se tem um perfil génico típico de um dominante ou típico de um subordinado. E até sabemos reconhecer o perfil de um peixe que lutou, mas que não conseguiu perceber qual era o seu estatuto final.

Por que é que não conseguiu?


Porque não ganhou nem perdeu. Trata-se de peixes que nós pomos a lutar contra a sua imagem num espelho. Expressam um comportamento social, mas como lutam com a sua própria imagem, não conseguem resolver essa interacção.

E aí, o que é muito curioso, é que a alteração génica é quase inexistente. Isto sugere outra coisa interessante: que existe uma dimensão cognitiva na activação da resposta génica. Tem de haver uma avaliação, uma interpretação pelo peixe daquilo que lhe está acontecer. E é só quando ele se convence de que está a mudar de estatuto, de que está a transformar-se de subordinado em dominante, que surge a alteração do perfil de expressão génica.

E os genes cuja actividade muda vão fazer o quê? Qual é a parte seguinte na cadeia de acontecimentos biológicos?

A esta onda de resposta a nível dos genes segue-se uma onda de resposta a nível das proteínas que esses genes produzem, à qual se segue uma onda de resposta a nível do fenótipo das células cerebrais - isto é, uma alteração daquilo que a célula faz e das suas ligações com outras células.

Um dos genes que nós descobrimos (o BDNF) está envolvido na plasticidade neuronal. E o que os nossos dados preliminares sugerem é que parte desta plasticidade neuronal passa pela alteração de redes neuronais, por formar novos neurónios que se vão incorporar em circuitos neuronais e se vão tornar funcionais. Neste caso, vamos assistir a um rearranjo estrutural do circuito neural subjacente à produção do comportamento.

Mas a reorganização do circuito induzida pela alteração da expressão dos genes também pode acontecer apenas através de alterações dos níveis de actividade de neurónios já existentes no circuito. É como se tivéssemos uma equipa de futebol e fizéssemos substituições, colocando jogadores novos em função da informação que temos, ou, pelo contrário, mantivéssemos os mesmos jogadores dizendo-lhes para jogar de maneira diferente. Esses dois níveis de regulação dos circuitos vão a seguir produzir comportamentos sociais diferentes nos peixes.

Fazem estudos em seres humanos?

Sim, muitas das ideias que investigamos nos animais, também as investigamos em humanos. Obviamente que aqui não podemos recorrer às abordagens intrusivas que utilizamos nos animais e, por isso, o que medimos são respostas hormonais. Algo que estudamos muito é a forma como o ambiente social activa certas respostas hormonais, ou seja: como é que os mecanismos de avaliação cognitiva activam a resposta hormonal. Nos humanos, podemos ser mais minuciosos a nível psicológico e tentar perceber o que está a mediar a resposta.

Também temos estudos recentes, muito interessantes, que mostram que, em situações de competição social, as variáveis-chave são a percepção da ameaça e a familiaridade. O que acontece é que a percepção de uma ameaça vinda de um sujeito familiar não activa uma resposta hormonal, mas se o um sujeito não for familiar, passa a activar.

Portanto, as subtilezas sociais que encontramos nos peixes, também as encontramos nos humanos e, no fundo, temos dois sistemas de estudo: os peixinhos, onde podemos manipular mais intrusivamente e ir atrás do que se passa a nível de expressão génica no cérebro; e os humanos, onde utilizamos paradigmas muito parecidos, mas onde medimos parâmetros cardiovasculares ou respostas hormonais. O tema é o mesmo.

Ao mesmo tempo, os humanos podem dizer o que sentiram, ao contrário dos peixinhos.

Os humanos dão-nos de facto uma informação mais rica no que diz respeito à componente de tradução cognitiva do social para o biológico. É esta capacidade humana que estamos a aproveitar.

O seu trabalho tem aplicações em Psicologia humana?

Como referi, nós estamos a mostrar, nos nossos peixinhos, que não é o que lhes está a acontecer o que realmente interessa, mas a percepção que eles têm do que lhes está a acontecer. E que essa percepção tem um efeito diferencial no cérebro. Não é o que lhe está a acontecer que interessa, porque o peixinho que lutou com o espelho lutou mesmo - mas nada aconteceu na sua cabeça. Mas se ele se convencer de que lutou e ganhou, isso activa uma resposta cerebral brutal.

Isto mostra que há plasticidade nas respostas comportamentais - e que, se conseguirmos desenvolver modelos de intervenção que permitam alterar a maneira como uma pessoa pensa sobre o que lhe está a acontecer, vamos poder, em teoria, fazer o que o peixinho faz: mudar as percepções que essa pessoa tem, a maneira como ela pensa sobre as coisas. E desenvolver estratégias para lidar com elas (coping). Se dermos essas ferramentas às pessoas, isso potencialmente vai amenizar as respostas negativas que poderiam ter.

Por outro lado, isto abre a via à explicação do psicossomático, porque mostra que a forma como pensamos nas coisas pode ter um impacto no nosso cérebro e no nosso corpo. Portanto, mostra que [as manifestações psicossomáticas] são coisas reais, não são coisas que precisam de explicações muito analíticas, muito rebuscadas, do ego... De facto, isto está a dar aos que fazem análises mais dinâmicas pistas sobre os mecanismos biológicos por trás dos processos que eles utilizam nas terapias.

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